Um pensamento estranho passou pela minha cabeça agora.

As vezes, uns flashes da noite em que a Vivi morreu aparecem, e eu lembro de alguns detalhes. Eu já lembrei dessa noite toda várias vezes, e não tem nada em especial sobre isso. Não precisa de algum evento ter acontecido pra que eu volte a lembrar dessa noite nem nada disso. Ela só vem, como se sempre estivesse ali no fundinho da mente. Eu acho que está.

Enfim, eu pensei que a última memória que eu tenho com a Vivi é uma memória em que ela já não estava mais viva. Vivi morreu no colo do meu pai. Ele saiu na rua, com ela nos braços, quando a gente percebeu o que estava acontecendo. Ele fechou a porta e ficou lá, nanando ela. Eu esperei um pouco pra ir atrás dele. Eu sabia o que eu ia ver quando eu fosse. Eu ainda não tinha começado a chorar.

Quando eu e o pai voltamos da rua, o pai colocou a Vivi de volta no “bercinho” em que ela dormia ao lado da minha cama. Eu trouxe ela pra casa e esperamos. Estava dando um jogo do Grêmio na TV, mas eu acho que o pai pediu pra esperar porque não era para enterrarmos ela ainda. Ela ficou no berço dela enquanto o pai se acalmava. Minha mãe voltou da garagem, onde ela tinha ido, para guardar os pertences da Vivi (ela não queria que eu dormisse ao redor das coisas dela, eu acho).

Minha última memória da Vivi aconteceu ali no chão da sala, onde nós sentamos muitas vezes juntos. Ela me acompanhava enquanto eu via filmes e séries noite adentro. Eu gostava de sentar no chão pra ficar no lado dela, com a mão repousada nas costas dela, fazendo carinho. Minha última memória com a Vivi foi fazendo exatamente isso, mas eu lembro de ter pensado em fazer isso até o fim, porque eu nunca mais ia sentir os pelos dela entre meus dedos. Eu pensei, literalmente, em tentar marcar essa sensação na minha cabeça. Pra lembrar como era fazer carinho na Vivi.

Minha mãe sentou perto da gente por um tempo e tentava fechar os olhos da Vivi, pedindo pra ela descansar. A Vivi não morreu com os olhos esbugalhados nem assustados, mas eles continuaram abertos quando a gente enrolou seu corpo no cobertorzinho em que ela dormia e enterrou ela no lado da casa, num trechinho de grama que dá pra ver da cozinha. Foi uma escolha prática do meu pai (a terra ali estava úmida naquele dia), mas eu agradeço ele até hoje por isso. Quando eu estou lavando uma louça na casa dos meus pais, ou tomando uma água, é impossível não olhar pela janela. E daí eu vejo onde seu corpo ficou.

Eu não chorei naquela noite. Eu não senti nada naquela noite, nem na manhã seguinte. Minha mãe veio me ver quando eu fui me deitar. Eu acho que ela esperasse que eu estivesse chorando. Mas eu nem pensava em nada. Eu lembro de ter contado pra Luiza, que naquela época ainda era minha colega de trabalho, no Slack na manhã seguinte. A saudade ainda não tinha batido ali. As coisas estavam sendo práticas. Ela me pediu pra eu tentar tirar o dia de folga, mas eu não fiz. O trabalho aquele dia foi normal.

Eu não lembro quando eu chorei pela morte da Vivi pela primeira vez. Eu sei que eu chorei muitas vezes nos meses e anos seguintes, quando esse tipo de lembrança me vem em mente. Eu fico furioso comigo mesmo de que é esse momento que eu lembro dela, de toda uma vida que compartilhamos juntos. São essas, as últimas memórias que eu tenho, que me fazem lembrar dela. Eu não sei como me “educar” a lembrar de quando eu vi ela correr com o carrinho pela primeira vez, ou quando ela me xingava porque queria comida, ou se apoiava nos meus pés enquanto eu trabalhava. Eu sei que eu tenho essas memórias dentro de mim também, mas não são elas que aparecem quando eu preciso delas. Por algum motivo, eu sempre preciso lembrar da Vivi, mas eu queria que fossem memórias melhores.